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Páginas amarelas: Humor negro

A luz de 60 watts iluminava a mesinha precariamente. O pequeno caderno amarelado tremia ritmicamente com o movimento veloz do lápis sobre ele. O carvalho cheio de marcas, cortes e sujeiras, mantinha se firme, sem aparentar a velhice em sua sustentação. A mão branca que voava de lado a lado do papel, exibia já inumeras veias salientes pelo esforço físico desprendido para a realização da escrita. A lágrima escorreu do olho esquerdo e manchou a folha áspera.

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- Eu já disse: não!
O telefone chocou-se violentamente no gancho. Com a ponta dos dedos massageando a têmpora, se apoiou na mesa com os cotovelos, e de olhos fechados tentou relaxar. Já não era a primeira vez que se esquecia de algo. Ultimamente, o stress estava lhe causando sérios danos a memória, o que lhe causava além de terríveis dores de cabeça, problemas no trabalho. Abriu a gaveta e puxou uma cartela de comprimidos. A dor de cabeça voltara. Engoliu os comprimidos com raiva e sentiu-os trancarem na garganta e descerem arranhando, até caírem no estômago. Sua mente rodava com os últimos acontecimentos. A pressão era enorme. Seu chefe estava a ponto de demiti-lo. Sua esposa reclamava da falta de atenção para com ela e seu filho de 8 meses. E sua amante parecia mais interessada em seu dinheiro, do que nele propriamente.
Em uma semana ele estaria completando 30 anos e ninguém dava a mínima também. Nem ele. O excessivo calor previsto para durar até o fim-da-semana só o fazia pensar em um banho gelado e na sua nova aventura. Dane-se a ética, ninguém queria saber dele e ele também não queria saber de ninguém. Outra amante poderia parecer sórdido para outras pessoas, mas para ele não importava. A única coisa que ainda o prendia a tudo isso era seu pequeno filho, um bebê robusto, de pele clara e olhos de um cinza belíssimo. Ah, mas se não fosse por ele...
A dor começava a sumir e uma leve sonolência começava a nublar-lhe a mente. Sacudiu a cabeça e voltou ao trabalho.

O ar quente e abafado da rua lhe trouxe de volta a realidade. Enquanto saía do escritório com o ar condicionado ligado ao máximo, lembrava dos carinhos da amante. Mas agora voltava ao ar opressivo que lhe trazia a mente situações mais desgastantes e repulsivas. Dirigiu-se até o carro, que ficara o dia inteiro exposto ao forte sol de verão. Ao abrir a porta, um calor ainda maior soprou para fora, fazendo-o instintivamente se afastar. Entrou no carro com cuidado. O calor lhe irritava. E agora o trânsito o irritaria ainda mais.
O celular tocou. Antes de atender ele arrancou com o carro, dirigindo em velocidade imprudente pela rua principal.
- Sim? - atendeu ele mal-humorado.
- Querido. - disse uma voz triste pelo telefone. - Você vem para o jantar hoje?
Irritado pela pergunta, mentiu algo como uma reunião e desligou o telefone. Dirgiu-se à casa da amante.

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Chegara tarde na noite anterior e agora estava com sono. Sentado na cama, numa indecisão sonolenta sobre qual meia usar. Sua mulher já preparava as coisas, dizendo que teria que sair mais cedo e ele levaria o menino para a creche. Ok, dissera. Tanto fazia. Se bem que, um tempo a mais com seu menino não ia fazer mal.
Que noite terrível tivera. A nova amante parecia ter adotado os mesmos costumes da antiga. Mal chegara na casa e ela já pediu a ele que lhe comprasse algumas jóias. Na mesma hora perdeu toda a vontade de fazer qualquer coisa e saíra para beber. Agora a ressaca acabava-lhe com a mente.

Pegou o menino e colocou-o no banco de trás do carro, onde estava sua cadeirinha. O trânsito estava caótico como sempre. Um acidente mais a frente causara um engarrafamento de 3 quilômetros. Lembrava-se da cara irritante da amante na noite passada. Voltou-lhe a dor de cabeça com força total. O calor no carro o fazia transpirar muito e fazendo o delirar muitas vezes. Via a face da amante que de repente se tornava sua mulher, com um rosto triste que lhe dava dó. Sentiu-se angustiado. Veio-lhe a imagem do seu chefe gritando, mas seu grito parecia de buzinas de carro em seu rosto. Piscou os olhos e voltou a si. Ainda estava parado no trânsito e o sol subia mais alto ainda. A dor de cabeça cada vez mais forte. Resolveu voltar para casa e descansar um pouco. Não estava em condições de trabalhar hoje.
Assim que o carro virou a esquina, começou a se sentir melhor. Estacionou na frente de casa sem se preocupar em colocá-lo na garagem. Entrou em casa pegou 2 comprimidos e tomou-os com um copo de água gelada. Tirou os sapatos, afrouxou a gravata, recostou-se na poltrona com imenso prazer e dormiu.

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Sentiu no bolso da camisa algo tremer e de súbito acordou. Devia ter dormido por duas ou três horas. A tontura do sono ainda o atordoava. Atendeu o celular.
- Querido, onde você está? - a voz de sua mulher irritava-lhe ainda mais pelo celular, principalmente por acordá-lo.
- Estou em casa. Não me senti bem e resolvi descansar um pouco. O que você quer?
- Onde está o bebê?
- Deixei-o na creche, como você pediu.
Ela silenciou.
- Não pode ser, - disse ela - a diretora da creche acabou de ligar dizendo que você nem passou lá hoje.
Algo estalou na sua mente. Seus olhos se arregalaram. Sua mulher o chamava mas ele não respondia. Deixou o telefone cair no chão e correu em direção ao carro. A tontura do sono ainda o deixava desequilibrado, mas ele seguiu firme ao seu destino. Botou a mão na porta, mas ela estava trancada. O filme colocado nos vidros e a visão turva não permitiam que ele visse por dentro do veículo. Pegou uma pedra e com força jogou-a contra o vidro. "Preciso abrir". Nada. "Não ele, por favor". Jogou-a outra vez. Bate. Nada ainda. Crava os punhos com força, mas o vidro não cede. Corre até dentro da casa e procura em todos os lugares mas não acha a chave. " Ele é inocente, não, não". Lágrimas de ódio e dor se espalham pelo seu rosto cada vez mais fortes. Sente-se impotente. Uma criança. O bolso. Sim, estava no bolso o tempo todo. Idiota, idiota, idiota.
Talvez ainda haja tempo. Correu cambaleante até o carro, destravou-o e entrou rapidamente.
A criança parecia adormecida. Ele a segurou no colo e desastradamente tentou ouvir a respiração. O batimento cardíaco...sim!!! Havia! Mas, como batia acelerado. "Não, não,não.".
A criança parecia um saco de ossos em seus braços. Ele chorava agarrado firme a ela. Seus vizinhos se aproximaram devagar. Ele gritava, berrava. Os olhos cinzas abertos, sem vida. Não havia ouvido o coração do bebê. Mas sim, o bater desesperado de seu próprio coração.


Uma folha amarelada voou pela calçada.

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